Quando falamos de mentira, quase sempre entramos pelo campo moral: certo ou errado, honesto ou desonesto. Mas e se olhássemos para a mentira como um dispositivo de defesa, um mecanismo automático de sobrevivência que os humanos ativam quando uma exceção ocorre no “sistema social”?
Mentira como Exception Handler
Na engenharia de software, sabemos que um programa pode falhar. Quando isso acontece, usamos try..except para capturar a exceção e impedir que o sistema quebre. É um atalho pragmático: o erro não é resolvido, mas o processo segue rodando.
A mentira funciona da mesma forma no comportamento humano.
- Quando alguém se vê diante de um erro, um equívoco ou uma contradição lança-se uma exceção.
- Em vez de encarar a verdade (o stack trace cru), a mente dispara o handler: uma mentira, uma omissão, uma distorção.
- O objetivo não é corrigir, mas preservar a execução social: status, harmonia, reputação.
Assim como no código, o handler protege no curto prazo. Mas se tudo vira except, o sistema nunca aprende a lidar com o bug real.
Mentira não é Regra de Negócio
Em software, sabemos que há diferenças entre validar regra de negócio e capturar exceções inesperadas.
Imagine um campo que exige uma entrada numérica maior que zero. O correto é implementar uma validação clara: não permitir que o usuário insira “0”. Mas, por preguiça ou atalho, alguém deixa passar e coloca apenas um try..except para capturar o erro quando ele inevitavelmente acontecer.
Isso é má arquitetura. Por quê? Porque não se trata de um evento imprevisível: era óbvio que um dia alguém iria digitar “0”. O que deveria ser tratado como regra virou exceção.
A mentira no comportamento humano funciona do mesmo jeito. Quando um erro é claro e objetivo, mas em vez de assumi-lo cria-se uma narrativa para mascarar o problema, estamos transformando uma regra simples em exceção artificial.
Exceções têm seu lugar — são para os casos em que a dúvida persiste ou em que não sabemos como o sistema reagirá a uma situação rara. Mas se usamos esse mecanismo para encobrir o que é previsível, caímos em entropia: gastamos energia para esconder o óbvio em vez de resolver a causa.
Entropia da Mentira
A verdade é única, objetiva, mensurável. A mentira, por sua vez, é múltipla: infinitas variações, cada uma abrindo uma nova possibilidade de ruído.
Num sistema técnico, quando não confiamos nos dados, aumentamos controles: logs redundantes, verificações extras, auditorias. No sistema humano, quando a mentira se torna rotina, o resultado é o mesmo: aumenta o custo de validação. Precisamos provar o óbvio, documentar evidências, repetir explicações.
A mentira, como dispositivo de defesa, consome energia cognitiva de todos os envolvidos.
Cultura, Defesa e Harmonia
Em muitas culturas, especialmente as que evitam confronto direto, a mentira não aparece como maldade, mas como forma de manutenção da harmonia. Distorcer ou inventar pode ser visto como menos desconfortável do que admitir “eu errei”.
Mas esse atalho tem um preço: desloca o erro do indivíduo para o sistema, obriga o técnico a provar o evidente, cria camadas de atrito que corroem a confiança.
A Arquitetura da Verdade
Um bom sistema não pode viver de handlers infinitos. Usamos exceções para o inesperado, não para o cotidiano. Se tudo é exceção, não existe arquitetura — só improviso.
Da mesma forma, a mentira pode até ser entendida como defesa pontual, mas não pode ser normalizada como arquitetura de convivência. O custo é alto demais.
A verdade pode ser dura, mas é simples. É a única base sólida para reduzir entropia. E como em software, se queremos um sistema confiável, precisamos lidar com o erro real, não apenas engolir exceções.
Mentir é o except humano. Mas um sistema saudável não é medido pela quantidade de exceções que consegue engolir, e sim pela capacidade de tratar os erros de forma estruturada.